Quatro horas da tarde. Carlos encontra-se no hospital. Martim, um dos filhos, cansado de tanto cuidar do pai, procura desesperadamente ajuda. Ouviu falar que um médico especialista – o doutor Salomão – tinha tranquilizado alguns colegas da sua empresa quando passaram por uma situação familiar semelhante. Agora era a vez dele o procurar. Acreditava que este médico, com as suas palavras e conhecimentos, de algum modo o poderia consolar e abrir perspetivas de futuro, para poder viver com mais harmonia. Sabia que a doença do pai – Alzheimer – era irreversível. Foram muitas as noites passadas em claro por causa das insónias intermináveis que o pai tinha, acompanhadas pela obstinada obsessão em sair de casa para ver os amigos. As birras e o bater o pé com medo das cobras que se encontravam em casa não paravam. Martim estava exausto. Que fazer?, perguntava aos irmãos. A resposta, não a encontrava em lado nenhum. Tentou contratar uma pessoa para cuidar do pai enquanto ia trabalhar. Sim, precisava trabalhar para ganhar o seu sustento e espairecer um pouco. O telemóvel não parava de tocar. Por muito boa vontade e necessidade de trabalho que as pessoas contratadas para o ajudar tinham, não conseguiam aguentar muito tempo. Uma após outra deixavam de cuidar do Carlos. “Não posso continuar”, diziam. Pensou em meter baixa para poder estar com o seu pai, agora com 72 anos de idade, mas tinha medo de ser despedido. Os seus irmãos há muito lhe diziam que era melhor interná-lo num lar. Ele, porém, pensava que essa não era a solução. O pai merecia uma atenção de maior proximidade dos filhos. Que pena, dizia, ser o único dos quatro filhos a pensar assim! Se colaborassem, poderia estar com todos. Cada um deles acolhê-lo-ia durante uma semana. Assim, os outros descansariam, para que, quando fosse a sua vez, pudesse acolher com amor o papá. Mas não. “Era muito pesado”, diziam…
À porta do gabinete médico, ouviu-se uma voz. Entraram. Já sentados, procuravam responder às questões que o doutor Salomão colocava.
– Então, o que o traz por cá?
– Senhor doutor, não aguento mais. O meu pai dá cabo de mim. Amo-o mais que tudo… mas não sei o que fazer.
– Não sei porque o meu filho me trouxe aqui. Eu não estou doente.
– Sim, sim, disse o doutor Salomão para o consolar. O senhor Carlos apenas está um pouco cansado…
Martim não queria acreditar no que ouvia, mas um simples piscar de olhos tranquilizou-o. Continuou o doutor Salomão:
– O Senhor Martim precisa de ajuda. Talvez alguém que esteja em sua casa enquanto sai um pouco.
– Senhor doutor, as pessoas não aguentam. Já tentei de tudo. Não vejo solução.
– Já pensou em colocar o seu pai numa casa de repouso? Sempre estará acompanhado 24 horas por dia com pessoas preparadas para estas situações…
– Os meus irmãos dizem-me para o colocar num lar, mas não queria abandonar o meu pai.
– Eu sei, senhor Martim, que muitos filhos depositam os seus familiares num lar e esquecem-se deles. Não os visitam. Parece que os abandonam. Mas se colocar o seu pai numa casa de repouso e o for visitar como se esta fosse a sua nova casa, não o abandona.
– Mas… é o meu pai. Foi ele que me deu a vida e me fez homem. Não sei o que parece deixá-lo só. Depois, muitas pessoas que são colocadas numa casa de repouso, sentem-se desprezadas e começam a definhar. Aos poucos, a tristeza consome-lhes a alma. É o fim.
– Senhor Martim, não é verdade que trabalha? Durante o trabalho está fora de casa. Será que poderíamos dizer que, nesse tempo em que se encontra fora de casa, abandonou o seu pai?
– Não, senhor doutor! Apenas fui trabalhar…
– Pois. Colocar o seu pai numa casa de repouso poderá custar muito. Mas entre ficar esgotado por não conseguir dormir, trabalhar de forma desleixada, andar desesperado disparatando com todos ou colocar o seu pai numa casa de repouso… talvez seja preferível coloca-lo numa casa de repouso.
– Custa muito, doutor.
O doutor Salomão olhou atentamente para o Senhor Carlos. Depois de o examinar bem, aconselhou-os a comprar um medicamento mais indicado para o momento. Iria com certeza ajudar o Martim neste seu cuidar amoroso do seu Pai. Receitou também umas vitaminas para o Martim. Iria ajudá-lo a ficar mais desperto e fortalece-lo nesta sua grande entrega ao seu pai. Sem demora, Martim levou-o para casa. Depois, dirigiu-se à farmácia para comprar o medicamento. Por sorte não foi necessário encomendar. Havia em stock. Ao jantar comentou com Sofia, sua esposa, a posição do doutor Salomão. Disse:
– Estão todos contra mim, Sofia. Até o doutor. Já viste que me aconselhou a internar o pai numa casa de repouso!?… Ninguém me entende!…
– Tem paciência, Martim. O doutor quis ajudar-te. Andas muito cansado. Precisas de parar um pouco…
Depois do jantar, já com o Carlos deitado – por milagre estava mais calmo – deteve-se um pouco a ver os “prós e contras” na televisão. Coincidência ou não, debatiam a importância da vida e da morte. Num dos painéis encontravam-se algumas pessoas a defender a eutanásia. Diziam que facilitava a vida de todos, que assim os doentes não sofreriam mais, que o sofrimento deve ter solução, enfim, que até estavam a ajudar as famílias permitindo que pudessem viver mais em paz. A eutanásia seria dar dignidade ao fim da vida. O outro painel defendia a vida até ao fim, falava dos tratamentos paliativos como ajuda necessária para estas situações. Diziam que ninguém tem o direito de dar a morte seja a quem for. Para eles, defender a vida até ao fim era um objetivo. Martim ouvia atentamente tudo o que diziam e pensava: será que estou a ouvir bem? Onde anda o amor? Matar o meu pai só porque está a incomodar-me? Será que não tem direito a ser acolhido e amado só porque tem uma demência? Estava revoltado. Como pode a sociedade pensar em destruir uma pessoa, por muito boa intenção que possa ter, só porque deixou de ser útil?
– Vem deitar-te, Martim.
– Ouviste o que eu ouvi, Sofia? Está tudo louco…
– Isso faz-te mal. Eu sei que amas o teu pai. Por isso, desliga a televisão e vem deitar-te. Precisas de descansar. Amanhã tens um dia cansativo.
Era tarde. Ouvindo a sua amada esposa, Martim lá foi para o quarto. Ainda falou um pouco com Sofia. Por fim, exausto, deitou-se.
Aquela noite foi tranquila. Contrariamente ao normal, Carlos deixou-os descansar. Pela manhã, já depois de tomar o pequeno-almoço, despedindo-se de Sofia, Martim dirigiu-se para o trabalho. Pelo caminho, resolveu telefonar aos irmãos dando-lhes conta da situação. Embora com alguma dificuldade, conseguiu falar com todos. Combinou encontrar-se essa mesma noite com eles em sua casa. Já à porta do escritório, com o carro parado, encontrou o Tomás, seu colega de trabalho, que vendo-o chegar a horas, lhe perguntou como se encontrava.
– Andas muito cansado, Martim. Não seria melhor tirares um tempo de férias?
– Achas, Tomás?
– Sim, acho. Aliás, ontem de manhã comentei com o Senhor Rafael, o administrador, a tua situação. Sugeri-lhe mesmo que te ajudasse, pois todos sentimos que não andas bem. O teu rendimento não é o mesmo. Por isso, como amigo, sugiro-te que vás falar com o Rafael e lhe peças um tempo de férias. Far-te-iam bem.
– Obrigado, Tomás. Será que o Senhor Rafael me vai entender?
– Não custa tentar. Vai em frente. Nós estaremos aqui para te ajudar.
Pelas onze horas, o administrador dirigiu-se ao escritório. Encontrou Martim concentrado. Estava a despachar um documento para a empresa Fonseca & Irmão. Aproximando-se dele, pediu que o acompanhasse ao gabinete. Gostaria de falar-lhe um pouco. Sobressaltado, acompanho-o sem demora. Já no gabinete, sozinhos, comentou ao pormenor a sua situação.
– Aqui na empresa estamos todos muito preocupados com o Martim. Como o podemos ajudar?
– Senhor Rafael, não tenho palavras para vos agradecer tanta preocupação. O Tomás sugeriu que eu lhe pedisse um tempo de férias. Tenho medo que a doença do meu pai se prolongue por muito tempo. Não serão poucas, as férias?
– Seria apenas o começo. Se não forem suficientes, poderá meter baixa.
– Mas… e o meu trabalho? Quem me substitui?
– Não se preocupe. Alguém ficará no seu lugar. Afinal, temos de ser uns para os outros…
– Obrigado, Senhor Rafael!
Mais aliviado, foi para casa. Sofia admirou-se. Não era costume o Martim chegar tão cedo. Terá acontecido algo? Martim apaziguou-a. À noite, após o jantar, encontrou-se com os irmãos. Depois de muito falar, decidiram apoiar mais de perto o irmão. Perceberam que era demais ser apenas um dos irmãos a cuidar do pai. Antónia foi a que mais resistiu. Divorciada há uns anos e a cuidar dos filhos, não sabia como poderia ajudar. Mesmo assim, disponibilizou-se para o que fosse preciso. De repente, ouve-se um grito…
– Que foi?, perguntou Martim.
– Foi o avô, papá.
Correram todos para o quarto.
– Paaai… paaai…
– Calma, Martim.
– O meu pai, Sofia. Morreu, Sofia – gritava Martim a chorar.
Silêncio. Carlos, depois de um tempo com demência, acompanhado pela sua família, partiu. Deixou atrás de si o amor derramado no coração de Martim, dos seus netos e familiares. Todos recordarão a sua entrega, o seu amor. Ficará na memória de todos como aquele que fez da sua vida uma entrega repleta de carinho ao seu próximo. Agora, onde estiver, continuará a velar pelos seus. O seu funeral realizou-se dois dias depois, pelas dez horas da manhã. A vida, essa, continuou a ensinar Martim a dar-se a todos.
Martim procurou cuidar do seu pai com todas as forças que tinha. Momentos houve que estava exausto, mas não desistiu. Com Martim, podemos dizer que a vida – qualquer vida humana – é fundamental. Não deve ser desprezada por ninguém. Antes acarinhada e protegida. Foi o Senhor Jesus que disse: “Não matarás”. Mais: “não odiarás”. Antes: “amai os vossos inimigos”. Se Jesus nos pede para amar mesmo aqueles que nos fazem mal, procuremos amar todas as pessoas, independentemente do estado em que se encontram. Porque esse é o mandamento do Senhor: Amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a nós mesmos.
De Colores!